quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Sentindo sentidos: uma incursão aos afetos, o paraíso esquecido



(Profª PaTTi Cruz - Pedagoga Especial, Esp.Arteterapia,
Consultora de Desenvolvimento Humano e Criatividade
 Docente do Curso de Pós Graduação Lato Sensu de Arteterapia - Centrarte/RS, Diretora da  Theia Criativa – Espaço de Desenvolv,Pesoal e Processos Criativos, Contadora de Histórias)

Capítulo V do Livro: Arteterapia e Educação: A arte de tecer afetos e cuidado Ed.Laçus – Porto Alegre /RS Ano 2008

“Quem olha para fora, sonha.
Quem olha para dentro, acorda.”
(C.G.Jung)


Precisamos apurar nossos sentidos. Os sentidos do corpo e os sentidos da alma, para finalmente encontrarmos pelo caminho o sentido da nossa existência. E nesta necessidade de (re) encontro, por vezes imagino como se fôssemos antigos continentes perdidos, onde as civilizações desapareceram e deixaram apenas o eco de suas histórias. Enquanto civilização, ainda persistente no seio do universo, antes de sucumbirmos por completo diante das exigências e urgências da vida, do cotidiano que nos impõe correr a trilha do tempo, poderíamos destinar uma pequena parte do pensamento voltada a nós mesmos e as nossas relações com este espaço de existência. Poderíamos nesta parada para um apanhado de fôlego lançar-mo-nos perguntas que nos permitissem pensar sobre como estamos estabelecendo nossos vínculos, de que maneira estamos estendendo nossa teia afetiva. Ou se ela ainda existe de fato. Ou ainda, se é apenas uma pequena linha cujo fio é frágil e tende ao menor gesto de intolerância romper-se. Trazer o afeto em palavras é preceder senti-lo, é contextualizar a vivência com a veracidade dos fatos, onde os vínculos surgem como norteadores das relações humanas. É descolar dos vícios das profissões que muitas vezes nos corrompem pela mesma urgência da vida, na construção de resultados. Neste ínterim esquecemos que há na humanidade diferentes ritmos, diferentes linguagens que comunicam sentimentos e deixamos de ouvir a voz das emoções. E as diferenças que deveriam ser respeitadas são esquecidas ou até lembradas, porém, categorizadas. Portanto, da natureza mórbida das relações que vivemos atualmente, creio que seja na procura de detalhes que precisamos buscar a essência do que se perdeu.

O paralelo que proponho entre educação e afeto, não destina-se somente a reflexão sobre a educação que primeiro nos ocorre pensar, entregue por classes, quadros e personagens em escolas, mas a educação essencial, que é a educação da vida. Esta educação onde não há coadjuvantes, todos têm participação fundamental na construção e desenvolvimento de afeto que se traduz no desenvolvimento evolutivo de cada sujeito. Somente desvirtuando do caminho reto e sentido o vento que nos enleva e convida as curvas, poderemos vislumbrar novas paisagens dentro de nós. Deixando em suspenso o olhar que direciona-se a proliferação das urgências da vida, as exigências do que nos consome que é a pressa de se viver para alcançar aquilo que nem sabemos se é de fato o que dá consistência a nossa existência, só assim não acabaremos sem norte emocional. É preciso nos percebermos, percebermos a existência do outro, de suas necessidades, de suas ânsias, que são muitas vezes, mesmo que nas diferenças que compele a cada ser no seu humano singular, semelhantes as nossas.

Talvez seja necessário aprimorar, os sentidos, começando por justamente sentir cada um deles, por resignificar suas funções, nutrindo e germinando o percurso com a linha frágil do afeto que semeia vida, para quem sabe, nesta ação, fortalecê-la e de frágil torná-la sustentável e imprescindível. Se nosso afã de sobrevivência nos conduzir ao mundo submerso, afogado pelas águas do desamparo e da pouca tolerância, iremos contatar talvez, com uma parte em ruínas, mas que tem enorme chance de se reconstruir enquanto houver pulsação e vida. Como educadora refaço o caminho que percorri para perceber o quanto de afeto semeei e o quanto mais poderia ter semeado, sem que a obcessividade e a pressa de resultados me ocultasse a visão da essência do outro. O quanto de mim mesma não poderia ter sido mais regado a amorosidade. Encontro nesta procura a única certeza: de que independente de onde provém, o afeto é a confluência da educação essencial. Seja na sala de aula amparada pelas paredes que separam as categorias de alunos, a, b,e c, que equivocadamente, os profissionais tendem a categorizar para supostamente melhor trabalhar as dificuldades, sem darem-se conta de que as salientam alimentando os estigmas. Seja nos muros altos que na tentativa vã de trabalhar para incluir, cada vez mais excluem e distanciam do meio social maior, portadores de deficiência. Das casas frias, compostas por pessoas com mãos escorregadias que não têm tempo para o afago, nem ouvidos para a escuta, nem do olhar mais profundo dos pais para os filhos que os nomeiam pais do progresso, que buscam em seus investimentos profissionais, melhor prover as família, sem divisar as reais necessidades a serem supridas. E assim, a vida segue seu rumo num rio que nunca trará as mesmas águas, onde o tempo passa e os afetos se perdem, onde a sensibilidade não tem fluxo. É preciso incursionar, levando apenas uma leve mochila a ser preenchida pelas conquistas afetivas do caminho, desapegando-se das antigas crenças e conceitos formados, abrindo espaço para novos-velhos sentimentos, configurando-se em um novo ser que renasce como a fênix das cinzas. A fênix cuja lenda retrata um mito de sobrevivência milenar, que como nossos pré-conceitos, da mesma forma milenares, concebidos através de nossa existência, herdados pelas ações de nossa civilização ao longo do percurso vão ganhando força por tornarem-se hábitos. Pré-conceitos sobre como perceber o outro quando suas atitudes, tempo, ritmo e linguagem estão fora dos supostos padrões, sobre como viver neste meio que exige efeito e produto final, sobre como permanecer indelével diante de tanta falta de afetividade. Para postergar este legado e fundar uma nova hierarquia de valores vitais e essenciais para a existência humana, com base na escuta afetiva e na ressonância da compreensão das diferenças é necessário romper paradigmas, propondo-se as rupturas necessárias para que haja o ressurgimento. Talvez seja preciso a queima do que até hoje não nos deu sustentabilidade e ancoragem emocional, ao contrário nos ressecou como relva em terreno árido. Talvez nossa fênix esteja no momento certo de simbolizar este ritual e para provocar um primeiro pensamento de ruptura convoco as palavras de Montaigne:

O principal efeito da força do hábito  reside em que se apodera de nós a tal ponto que já quase não está em nós recuperarmo-nos e refletirmos sobre os atos a que nos impele. Em verdade como ingerimos com o primeiro leite hábitos e costumes, e o mundo nos aparece sob certo aspecto quando o percebemos pela primeira vez, parece-nos não termos nascido senão com a condição de submetermo-nos também aos costumes; e imaginamos que as idéias aceitas  em torno de nós por nossos pais são absolutas e ditadas pela natureza. Daí pensamos que o que está fora dos costumes está igualmente fora da razão”.

O presságio de uma vida sem afeto, pela força das atividades do mundo em torno do ter em detrimento do que se é e sente, amplamente difundido em nosso meio social que clama por resultados, nos leva a destacar uma parte nossa que se chama razão, confinando as emoções em outra parte de nós, a qual passamos a ter pouco acesso, esquecendo que é esta parte que nutre nossa humanidade. Que é esta parte que nutre nossas relações e torna possível um espaço de vida mais leve, agradável e, sobretudo saudável. Olhar para a vida, para o mundo, para as pessoas que dele fazem parte, como educadora é pensar para além das paredes da sala de aula, revestindo-as de afeto que possam transbordar outras esferas. Refletir sobre as ações humanas, incluindo as minhas como pedagoga especial é repensar na prática que vem sendo desenvolvida e protegida pelos muros que separam as diferenças. Pensar sobre as emoções, sem deixar a minha sentimentalidade e todas as sensações que me movem e comovem de lado, como arteterapeuta é querer escutar as melodias que cada ritmo humano é capaz de expressar dentro de seus corações ao contatar com o que universo oferece como possibilidade de existir. Olho para a vida e sinto, sinto e ajo a partir do que o meu ritmo interno me comunica e, meus passos seguem o caminho de querer ingerir outro nutriente que me apresente um espaço de estar, mais criativo e menos limitado. Onde os hábitos e costumes que me foram apresentados possam ser questionados e transformados, reciclados até. Não há outro terreno a ser habitado que não seja o das emoções, alimentado pelo afeto e pela compreensão, que nos possa fazer diferentes do que hoje somos. Tentemos ouvir a voz de Chaplin nos dizendo mansamente: “Não sois máquina, homens é que sois”. Há uma necessidade quase ecológica de poder compreender as emoções, pois é através do que pensamos e sentimos que nossas ações se manifestam diante do mundo em que vivemos. Este espaço de existência é um lugar para viver qualitativamente, portanto, é natural que estejamos conectados com o meio da maneira mais pacífica e equilibrada possível e isto só poderá acontecer na medida em que também nos encontrarmos em equilíbrio conosco mesmo e nossas infinitas formas de sentir. Creio em um lugar para se viver que contemple mais a expressão dos sentimentos, que seja mais aberto ao abraço, ao aconchego e ao acolhimento. Um lugar onde cores perpassem dias sombrios e que a vida possa fluir sem tantas intolerâncias. Onde o homem possa criar, que é a base de uma vida saudável. Fayga Ostrower, nos diz que toda a atividade humana está inserida em uma realidade social, cujas carências e cujos recursos materiais e espirituais constituem o contexto de vida para o indivíduo. São esses aspectos, transformados em valores culturais, que solicitam o indivíduo e o motivam para agir. Nas palavras de Fayga criar é, basicamente formar. É poder dar uma forma a algo novo. Fayga traz ainda a idéia de que as formas de percepção sobre as coisas, o mundo e a construção e, a percepção sobre as relações não se estabelecem ao acaso, há sempre um nexo, um sentido. E o homem é o centro focal que estabelece as relações entre os fenômenos que acontecem a sua volta, ligando-os entre si e vinculando-os a si mesmo. É possível acreditar que estas relações são feitas a partir das sensações e sentimentos atribuídos aos fatos e acontecimentos de acordo com as expectativas, desejos, medos e, sobretudo de acordo com a maneira que ordenamos todos estes sentimentos e as atribuições de sentidos em relação a eles.  É nesta busca de ordenar e de significar, como menciona Fayga, que está colocada a intensa motivação do homem de criar. Ordenando, configurando, relacionando e significando os fenômenos, atribuindo e valorando o sentido das ordenações e formas, o homem comunica-se com seus pares e com o meio. Nestas ações despertam-se as possibilidades, suas potencialidades, que segundo Fayga se convertem em necessidades existenciais. Sigo o percurso construindo na arteterapia um caminho para a educação da vida, motivada por tudo que é percebido e sentido com as pessoas, grupos e lugares onde venho desenvolvendo esta proposta. Quero nesta nossa incursão abrir uma imensa clareira para que possamos não apenas conhecer este universo das diferenças, mas para que principalmente possamos escutar as emoções que emanam destes relatos.
Em mais um período de trabalhos felizes e de grande aprendizado, essencialmente aprendizado sobre relações e afetos, desenvolvi uma proposta com portadores de necessidades especiais. Grupo lindo e intenso de uma Escola Especial em Porto Alegre. A Escola composta por aproximadamente 100 alunos, portadores de deficiência mental e em alguns casos doença mental associada, com idades bastante variadas, desde crianças a partir de 7 anos a adultos com 56 anos de idade. Fomos contemplados, eu, alunos e profissionais com a Oficina de Arteterapia que tinha um ponto fixo na Escola, onde semanalmente recebia os grupos em horários específicos, acompanhados por suas professoras e/ou terapeutas ocupacionais. Este projeto teve como principal objetivo oferecer um espaço aos alunos onde o foco era promover suas potencialidades. O trabalho com oficina de expressão não é novo em minha vida, contudo, esta proposta ganhou novos significados a partir do que conheci e construí com o grupo e as profissionais que os acompanhavam. A Oficina se propunha, fundamentalmente, a criação de oportunidades de expressão através do uso de materiais e recursos expressivos. Local destinado à descoberta das potencialidades, da expressão e da criatividade. Sua proposta alia-se à idéia de redimensionar o entendimento e conceito que temos sobre comunicação, e de proporcionar ao aluno através do contato com diferentes materiais, uma significação para sensações percebidas e sentimentos despertados na ação da construção e da elaboração da obra artística.

O que exaltamos na Oficina é a força que têm a expressão e impressão da imagem e sensações. No lugar do uso das palavras para falar do que sentimos, deixamos fluir a imaginação e permitimos que os traços e as cores tomem formas definidas ou não, construindo um cenário de beleza que representa o que ou quem somos naquele momento. Ressaltamos o fazer e o momento do processo de construção, o resultado final é apenas a conseqüência da sentimentalidade compartilhada pelas cores e formas.

A manifestação dos sentidos através da imagem supõe uma idéia de compartilhar e tornar visível aquilo que não é possível expressar em palavras. É uma forma concreta de mostra-se e demonstrar o que talvez haja de mais reservado em nosso ser. Somos seres de expressão revitalizados pela metamorfose deste procedimento, visto que sentimento e imagem vão se moldando, transformando e se estruturando até chegar a uma forma de compreensão por parte daquele que cria e vê o objeto de admiração posteriormente elaborado. Em um primeiro momento não há uma busca do significado imediato da idéia, mas sim a valorização da ação, do permitir aparecer aos olhos, do comunicar pictoricamente. A Arte reconhece em seus processos expressivos através das formas, cores, desenhos, tracejados, os conteúdos e as associações, como reflexos do desenvolvimento, habilidades, personalidade, interesses e preocupações do indivíduo, estimulando a auto percepção e o crescimento pessoal.

Os alunos nos mostravam as diferentes maneiras de perceber e experimentar os materiais, parecendo iluminarem-se ao despertar destas sensações. Juntos fizemos o reconhecimento das texturas, formas, cheiros, espessuras, maleabilidade ou resistência dos materiais, o estado que o recurso se encontra e idéias de possíveis transformações destes recursos a partir da manipulação. Muitas situações diferentes aconteceram em nossos encontros, desde alunos que se envolveram plenamente até aqueles que elaboraram um tempo diferente para se aproximar e chegar junto aos recursos artísticos. As formas de experimentação são a mais variadas e a descoberta das sensações ao toque dos mesmos e a tudo que eles podem proporcionar são fundamentais para que o aluno permita despertar seu interesse. Nem todos os materiais oferecidos nas dinâmicas possuem características que seduzem igualmente a todos, pois as sensações a respeito da Arte e da obra são subjetivas e intransferíveis. Algumas vezes, quando os recursos oferecidos não despertavam o desejo de exploração, os próprios alunos recorriam a outros materiais disponibilizados na sala para deixar fluir suas manifestações. Com isso, sinto e constato que Arte é a percepção do momento, é o fenômeno que desperta para a busca da verdade de cada um na atribuição de sentidos ao fazer. No espaço da escola, muitas vezes, prepare-se o terreno para o plantio de uma idéia, um plano estratégico de atividade e ao encontrar o grupo de alunos emana uma outra necessidade. É fundamental que o planejamento possa partir da observação, da escuta do grupo, do contato a ser estabelecido com os profissionais que trabalham mais frequentemente com estes alunos, para que possamos partilhar do mesmo caminho na proposta evolutiva dos educandos. É preciso considerar que certas circunstâncias nas quais o grupo se encontra nos direciona a mudança destes planos. A turma pode apresentar-se ansiosa, por exemplo, onde uma atividade que foi estruturada para um momento de descontração não abarca esta ansiedade. É preciso então, reestruturar, configurar uma outra ação que possa acolher o grupo e oferecer o continente para estas emoções, promovendo um o entendimento destes sentimentos. A Arte desenvolvida neste espaço configura também a construção de valores, de acordo com o foco trabalhado com cada turma e com o que os acompanha como grupo em relação que busca a promoção de vínculos para sociabilizarem-se entre si e com o mundo. Os grupos foram sempre bastante diferenciados em suas constituições emocionais e cognitivas, alguns alunos conseguiam melhor estruturar sua forma de pensar e elaborar a comunicação de suas sensações e necessidades, outros sem mesmo utilizar-se da comunicação verbal, muitas vezes não constituam uma forma de expressar claramente seus desejos. Contudo, o vínculo estabelecido com estes grupos, a convivência e a abertura para este entendimento auxiliava a construir um canal de aproximação dos mundos, transformando-os em um único. Desta forma, as propostas se diversificavam de acordo com a necessidade e o que desejávamos promover e oportunizar a cada um.

Seguem alguns momentos de incursão:

Trabalhávamos em um grupo bastante grande,que dedicava-se a uma proposta para alunos de terceira idade. Neste grupo alguns alunos demonstram dificuldade de aguardar sua vez para falar e pouca tolerância para respeitar o tempo e ritmo de outros colegas no que diz respeito a conclusão de tarefas. A proposta então era podermos trabalhar estas questões. Tínhamos a nossa disposição algumas tintas em composição aguada, uma folha branca de fácil absorção, em tamanho grande e um único pincel. A idéia era que todos pudessem observar o que acontecia cada vez que um colega fizesse uso dos materiais. Cada aluno deveria aproximar o pincel da folha e deixar que a tinta ocupasse os espaços sem espalhá-la sobre a superfície. O aluno seguinte faria o mesmo, aproximando o pincel no espaço que desejasse na folha. Todos observariam o processo, aguardando sua vez. Na medida em que as tintas tomavam conta do espaço formam-se manchas, algumas sobrepostas outras mais afastadas e nesta formação de imagens cada um descrevia o que percebia. Fomos conversando sobre como cada cor e as formas de aproximação do pincel, bastante similares entre si, poderiam produzir formas e manchas tão diferentes. Fomos conversando também sobre as sensações de cada um neste processo de ter que aguardar sua vez e o fato de observar o que o outro colega estava fazendo. As mais diversas falas foram surgindo durante o desenvolvimento da proposta. Fomos aproximando este tema de nossas vidas, de nosso dia-a-dia com as pessoas e de como isso se processa. Do quanto o respeito as diferenças é importante para que a convivência seja um caminho de aprendizado. 
A dinâmica foi se desenvolvendo, e as manchas foram tomando formas e sentidos diferentes para cada um, ao término da elaboração, afastamos a produção e o grupo teve a oportunidade de atribuir suas impressões a respeito do que viam. Cada um sugeria algo e a medida que olhavam, alguns concordavam com o que havia sido mencionado, outros não e assim fomos criando um diálogo espontâneo e descontraído. Criaram a impressão sobre obra a partir de seus olhares e entendimentos. A produção, embora tenha sido construída com uma mão por vez progrediu em uma obra coletiva. Mas, não apenas coletiva em seu fazer concreto, mas na dimensão de idéias, sugestões e descoberta de novos saberes.

Algumas falas no grupo que considero importante compartilhar:

1.     “ Às vezes eu sou com estas manchas. Às vezes eu gosto de misturar, às vezes não...às vezes quero ficar sozinha no meu canto e não quero falar com ninguém”. (K.32a)
2.     “Eu acho que às vezes as pessoas é que não querem se misturar com a gente. Olha só, eu às vezes não posso ficar numa festa ou numa janta na minha casa. Tenho que ficar no quarto para não atrapalhar. Aí, é que nem essa mancha separada aqui”.(P.43)
3.     “Eu gostei desse trabalho porque agora eu entendi que a gente tem que esperar o momento mais certo pra fazer as coisas.
De repente P. pode ser que outro dia tu possa ir  na janta da tua casa. Espera o momento certo e fala para tua mãe que tu quer ir”.
(G.44a)
4.     “Outro dia eu briguei com o Z. porque eu não tive paciência. Mas, é que nem esperar os outros usarem o pincel e depois vai ser a minha vez. Ele não precisa ser rápido porque eu estou com pressa, também posso aprender a esperar”.(P.52a)

Durante o processo muitas demandas vão surgindo, algumas até nem esperadas para aquele momento, mas são sentimentos que vem à tona buscando acolhimento. Trabalhar através de uma proposta arteterapêutica é um compromisso com a emoção do outro. Não creio que dar conta destas emoções seja uma tarefa fácil, ao contrário, contudo percebo o quanto é preciso o profissional ter uma formação, um preparo, um estado emocional que permita poder auxiliar nestas circunstâncias. Algumas vezes o próprio grupo vai dando um tom ao que vai surgindo, se posicionando e se mostrando disposto a também acolher, nós, arteterapeutas, vamos ajustando, contornando, e configurando novas possibilidades de percepção dos conteúdos que emanam do grupo, através do diálogo e da construção de possibilidades diante das situações.



Há encontros que resultam, unicamente no despertar da sensibilidade, do se permitir seduzir pelas sensações vivenciadas a partir do contato com os materiais oferecidos e a possibilidade de contemplar o nascimento de uma obra que representa as emoções do criador, possibilitando-o de reconhecer-se na sua Arte, de identificar a sua forma de ser e se relacionar com o outro e consigo mesmo. Neste encontro, especificamente, foi possível que cada um pudesse se reconhecer no grupo, sua postura, sua forma de relacionar-se com o problema que estava sendo sugerido repensar. As reflexões sobre as ações de cada um no espaço da sala e dos relacionamentos levou-os a perceber algumas situações conflituosas dentro de suas casas, com suas famílias, suas angústias e questionamentos. Algumas destas situações são orientadas e encaminhadas a outros profissionais da escola que trabalham com estes alunos (psicólogos e os professores em sala de aula), pois a proposta da escola é realizar um trabalho integrado, onde o aluno não seja atendido em fragmentos de sensações e sentidos, mas sim, contemplado em sua totalidade de ser humano e sua escuta seja ampla nos diferentes contextos da escola e promoção de ajuda destina-se a chegar aos locais de onde provém tais questões.

Um outro momento da oficina, com outro grupo trouxe um aprendizado de mergulhar no tempo que era proposto pela arte:

Neste grupo os alunos, em sua maioria,cuja faixa etária era de 18 à 25 anos, não estabelecia uma comunicação verbal bem elaborada. Manifestavam e apresentavam seus desejos e intenções através de gestos, olhares e sons que compunham sua forma peculiar de comunicabilidade. Propunha que trabalhássemos com areia colorida. Neste dia tínhamos no grupo um aluno que se sente livre ao estar em contato com a natureza: grama, terra, água. Quando está em espaço aberto olha tudo, nos indica suas observações e sorri, parecendo se deliciar com tudo que vê. A propósito, uma passagem que ilustra o que digo: em outra situação, quando já estávamos todos em sala quando observei que G. não se encontrava com o grupo. Procurei-o e o encontrei sentado na grama em frente a Oficina. Perguntei o que fazia ali e porque não estava com todos na sala. G. tem uma linguagem não expressa em palavras, mas muito compreensível por todo intensidade emocional que colocava em seus gestos e olhar. Para justificar sua saída, segurou minhas mãos passando-as na grama, olhou-me com uma expressão de estar satisfeito com as sensações provocadas por aquele lugar. Entendi imediatamente que G. se referia ao bem estar deste contato (ele e a natureza). Imaginei então, que muitas vezes não observamos os detalhes, as linguagens e suas diferentes formas de expressão. Imediatamente percebi que G.apreciaria nossa proposta da areia.
A nossa disposição: areia colorida, telas e cola. Apresentei ao grupo primeiramente, as areias o que causou certa movimentação. Experimentamos o recurso, percebendo a textura, as cores, fomos conversando a respeito do material. G. antes mesmo que fosse oferecida, busca na prateleira uma tela. A dinâmica consistia em espalhar sobre a tela a cola e após ir deixando cair sobre ela a areia nas cores que escolhessem. A maioria do grupo parecia fascinada pelo efeito produzido pela areia que caia sobre a tela. O livre movimento das mãos distribuindo a areia produziu imagens diversificadas. Alguns cobriam a tela por inteiro, outros deixavam espaços em branco e assim cada um foi colocando ali, espontaneamente as sensações despertadas pelo contato com o recurso. G. ficou, particularmente, muito admirado e feliz com sua obra.

Nestes momentos onde as sutilezas se manifestam busco as palavras de Osvaldo Montenegro em seu poema: “a arte pode apontar uma resposta, mesmo que ela não saiba, e que ninguém a tente complicar porque é preciso simplicidade para fazê-la florescer”. Talvez G. tenha conseguido capturar a essência do que não é palpável, da relação entre o que a arte promove e o sujeito que se entrega as sensações, permitindo-o ocupar espaço neste tal paraíso esquecido dos afetos. Talvez, G. nunca tenho deixado de estar ou buscar nutrir-se neste paraíso. É mais provável que nós, profissionais, tão mais preocupados com a produtividade e o resultado, não tenhamos a mesma grandeza de alma para perceber a simplicidade do toque e da descoberta, onde cada cor, cada forma, cada traço, cada movimento são fragmentos de sentimentos e sensações que se magnetizam em busca do todo, manifestado pela essência do artista.

Neste caminho junto a Arteterapia tenho procurado vislumbrar, o despertar da sensibilidade que promove a vitalidade de cada indivíduo, que favorece o seu lado saudável, sua criatividade e o contato com seus afetos interiores. Este é o ponto crucial de todos os entendimentos: o momento em que contatamos com o mais genuíno de nós, quando nos propomos a resgatar em nosso paraíso esquecido e perdido no tempo, o que nos configura enquanto sujeitos que estão dispostos em um contexto social, onde a base das relações está alicerçada no vínculo que nos aproxima - o afeto. A captura da fração do tempo em que estamos conectados com nosso mundo interno é fundamental para nos direcionar o olhar a aceitação da possibilidade de nossas emoções serem tocadas, nossos sentidos aguçados e notarmos aí nossa humanidade.
Quando trabalho com grupos, independente da realidade onde esteja, me mantenho atenta aos detalhes, onde cada gesto, cada forma de olhar e os movimentos sutis são mensagens a serem dimensionadas em importância. Algumas vezes a forma de conceber sua elaboração, refutando-a a um estado de menor valia ou distanciando-se dela, como não a reconhecendo enquanto obra sua, pode denotar uma circunstância onde o sujeito poderá estar sentido-se menos fortalecido para suas ações diante de sua vida e tudo que a compõe, ou estar negando-se a avaliar e perceber os fatos que possam estar surgindo pela sua constituição de obra. Levantamos hipóteses, conversamos e vamos buscando a melhor forma de clarear as obscuridades, a partir do que nos é trazido na fala ou expressão deste sujeito. A compreensão do tempo de cada indivíduo é também importante. Quero dizer com isso, que nem sempre a fala, a manifestação acontece quando esperamos. E que, na minha percepção de arteterapeuta, nem sempre esta fala é fundamental. Talvez, estejamos embevecidos que só trazendo para um nível de razão é que conseguimos contatar com a realidade destes conteúdos internos de uma forma mais plena na busca de soluções. O fato é que cada um tem o seu momento de racionalizar, de comunicar e não será na fala que a clareza poderá aparecer somente. É importante saber que algumas vezes, o indivíduo sabe bem o que  não foi dito e talvez nos traga isso em outro momento, no seu momento de trazer, ou não. Não somos deuses que comando espaço e tempo dos fatos acontecerem, somos arteterapeutas, que trazem a possibilidade do contato com este mundo interno, o olhar e escuta acolhedora, que sobretudo respeita os diferentes ritmos e individualidades. A Arte, segundo Vigotski (1999), é a mais importante concentração de todos os processos biológicos e sociais do indivíduo na sociedade, que é um meio de equilibrar o homem com o mundo nos momentos mais críticos e responsáveis da vida.

O grande desafio que nos é proposto neste processo de educação essencial é justamente a desacomodação do que nos é habitual, do que é de aceitação comum por estar inserido nos padrões do meio em que vivemos. É a inquietação das idéias e recomposição dos conceitos que nos encaminha a novas descobertas de como com- viver de forma afetiva, mais passiva onde os canais de escuta são abertos às emoções. Quem sabe, a partir desta incursão estejamos nos libertando do que nos foi deixado como herança, acreditar que o que está fora dos costumes está igualmente fora da razão. Quem sabe, a partir desta convocação aos afetos não passemos a perceber o mundo, pessoas e os vínculos estabelecidos por um olhar de iluminura e não pelos olhos opacos que não sentem. Sentir é essencial, afeto é fundamental porque a humanidade de cada um precisa ser despertada e quanto a essa desacomodação e mudança proposta, Bertold Brecht revela:

“Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo,
E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
Suplicamos expressamente:
Não aceiteis o que é de hábito como coisa natural,
pois, em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada,
de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada,
nada deve parecer natural,
nada deve parecer impossível de mudar.”


 Reflexão final
Seria o Afeto então, a resposta para as mudanças que desejamos? Seria o Afeto então, a resposta para nossas questões sobre o homem, sobre a sociedade, sobre o mundo e as relações? Seria o Afeto a solução? O Afeto não é uma lógica nem tão pouco a fonte milagrosa de toda a desumanidade. Afeto é essência, é vida, é a força integradora da emoção e da razão pela simples necessidade de fazer florescer o que é espontâneo em nosso ser. O Afeto, assim como a Arte nada nos promete a não ser a cumplicidade de imortalizar um momento único de entrega entre criador e criatura na busca de sua essência. O Afeto, assim como a Arte podem ser uma escolha, uma direção.


 Bibliografia
GUARESCHI, P. – Sociologia da prática social. Petrópolis-RJ, Ed. Vozes, 1992
                                 Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis-RJ, Ed. Vozes, 1995
JUNG, Carl Gustav  - Organização – O homem e seus símbolos. 16ªed., Ed.Nova Fronteira,1964
OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação – Ed.Vozes, Petrópolis/RJ, 1987
RESTREPO, Luis Carlos – O direito à ternura. Editora Vizes, 2ª edição, Petrópolis, 2000
VIEIRA, A. Pinto – Ciência E Existência. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1969
VIGOTSKI, L. – A formação social da mente. SP, Martins Fontes, 1987
                         -  Pensamento e linguagem. SP, Martins Fontes, 1988
                         -  Psicologia da Arte. S.P, Martins Fontes, 2001

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